quarta-feira, 5 de março de 2014

Sonhando ....



"Na casa onde ele vive não há computador, nem televisão ou aquecimento elétrico. Em contrapartida, há papel de carta, canetas, uma lareira.

A casa está plantada sobre uma ravina, entre outras, caiadas de branco, e tem um pequeno terraço onde ele vai acabar o dia a apreciar o Sol a pôr-se atrás do mar, enquanto fuma um cigarro sem pressa. À noite, acende a lareira, se for Inverno e fizer aquele frio húmido da nortada, capaz de enregelar um homem até aos ossos. E escreve-lhe sempre uma carta a dar-lhe conta das incidências da vida, dos seus pensamentos.

No seu apartamento, na cidade, ela desliga a televisão depois do jantar, põe um cd a tocar, lê a carta dele e responde-lhe.

Em tempos, ele também viveu na cidade. Trabalhava numa grande empresa e alimentava-se da adrenalina do quotidiano. Era frenético, a fazer contactos, a transbordar de entusiasmo, a convencer clientes, a correr atrás de resultados, apostado em ser o melhor. Era só ele, a agitação do trabalho, a vida boémia pela noite fora, muitos cafés pela manhã, almoços com clientes, reuniões sem fim, jantares tardios. Mas, de repente, tinha quarenta anos e a sensação de que a vida, a verdadeira vida, passara por ele. 

Largou tudo, partiu.
Agora vive nesta vila caiada de branco sobre o mar e ocupa-se da sua loja de artigos desportivos. Deitou fora os fatos, as gravatas, vai à praia à hora de almoço com uma prancha de surf.

Conheceu-o quando entrou por acaso na loja, num fim-de-semana comprido que a trouxe à vila com duas amigas, no início do Verão passado. Teve uma aula de surf com ele, jantaram no restaurante da praia, trocaram endereços com a promessa de se escreverem em breve. Ele cumpriu a promessa, ela respondeu-lhe e nunca mais pararam.
Ela regressou à vila com um saco no carro, preparada para passar três dias em casa dele. Aceitou o seu convite, embora pensasse que era um erro. Na verdade, conhecia-o mal e não estava certa de que fosse boa ideia aprofundar a relação, pois teria de partir novamente e moravam longe um do outro.

Mas os três dias transformam-se em seis meses e, não obstante ter-lhe dito em todas as cartas que nunca deixaria a cidade, acabou por largar o emprego e vender o apartamento. Agora vive com ele, ajuda-o na loja e pretende voltar a fazer surf depois de o bebé nascer. Ainda lhe parece difícil acreditar que fez tudo ao contrário do que pretendia, que deixou tudo por ele, mas está feliz e aprendeu que, afinal, não havia nada suficientemente importante para a impedir de mudar de vida, para melhor."

Tiago Rebelo

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